segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Dai-me outra cor, dai-me o amor, dai-me uma dor

Outro dia eu tava almoçando em casa - o que é algo a se comemorar -, e tava passando um desses programas de esporte da Globo. Eles estavam falando sobre Slackline, sabe? Uma nova brincadeira, que aqueles malucos ficam se equilibrando em cordas bambas, e agora eles resolveram fazer isso em lugares cada vez mais altos. Enfim, o que eu queria dizer é que tinha esse cara no estúdio, não lembro o nome dele, mas ele me fez lembrar de ti. Ele tinha exatamente o teu jeito. Mesma pose, com o rosto levemente levantado, como quem olha por cima, os olhos meio fechadinhos, e o sorriso… caramba!, o sorriso era o teu. Do jeitinho que eu lembro. Simplesmente igual.

Foi estranho. Eu nunca mais tinha pensado em ti. Se a gente não contar a Feira do Livro, claro, mas aí não vale, foi lá que a gente foi da última vez, lembra? Ano passado, pro show do João Bosco. Seria impossível não lembrar de ti ao ir pros shows desse ano. Já comecei a pensar em ti no meio do caminho. Te ver no dia do Gilberto Gil, aliás, não estava realmente nos meus planos. Falar contigo, no dia do Lenine, então… Isso não poderia fazer bem pra minha resolução de não pensar mais em ti.

Mas eu me comportei bem. Fingi que te ver era perfeitamente natural, e que perceber teus olhares não me causava efeito algum. Foi difícil… Então, talvez por uma providência divina, eu acabei te perdendo no meio da confusão de gente antes que toda a coisa do fingimento falhasse desastrosamente, e consegui sair daquela noite ilesa. Praticamente. Afinal, eu passei dois ou três dias pensando em ti, e ainda esperei te encontrar na noite do show do Móveis Coloniais de Acaju, como a perfeita idiota que sou. Mas, como eu disse, a Feira do Livro não conta, e eu voltei a não pensar em ti, até ver o cara do programa de esportes quando fui almoçar em casa.

E eu não gostei de lembrar de ti. Não gosto. A nossa historia não é o que a gente pode chamar de uma bonita história de amor. Não foi amor. Não foi bonita. E eu não consigo pensar em um motivo racional pra sentir o que eu sinto quando se trata de ti, e talvez tenha que ser assim, irracional mesmo. Mas qual o sentido? Uma amiga diz que não existe esse negócio de gostar de alguém se esse alguém não te dá motivos pra isso, e mesmo assim, cá estou eu, pensando em ti e me perguntando se tu vais estar no show do Mombojó, hoje. Lembra? Era o que tava tocando no teu carro da última vez…

(To sem áudio aqui no estágio, logo não sei se a qualidade desse vídeo é das melhores. Espero que sim. =P)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Do outro lado da tarde

Em janeiro desse ano, eu comprei o pocket O Ovo Apunhalado, do Caio Fernando Abreu, pra me acompanhar na viagem pro Rio de Janeiro. Eu nunca tinha lido mais do que poucas palavras dele, quase todas por causa de uma amiga viciada em caio f., e estava curiosa, logo, comprei o livro. Este, que ainda guarda um ticket do dia que fui ao Corcovado, ficou encostado, perdido entre outros dos meus amigos de papel, principalmente porque não tinha encontrado toda essa magnificência nos textos dele. Até hoje, 20 de setembro de 2010, quando peguei o livro pra ler mais alguns de seus contos, e me deparei com Do outro lado da tarde, penúltimo conto do livro. E foi um tapa na cara. Juro. Eu queria que esse texto fosse meu.

Sim, deve ter havido uma primeira vez, embora eu não lembre dela, assim como não lembro das outras vezes, também primeiras, logo depois dessa em que nos encontramos completamente despreparados para esse encontro. E digo despreparados porque sei que você não me esperava, da mesma forma como eu não esperava você. Certamente houve, porque tenho a vaga lembrança – e todas as lembranças são vagas, agora –, houve um tempo em que não nos conhecíamos, e esse tempo em que passávamos desconhecidos e insuspeitados um pelo outro, esse tempo sem você eu lembro. Depois, aquela primeira vez e logo após outras e mais outras, tudo nos conduzindo apenas para aquele momento.

Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse – e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado -  a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou. E foi essa coisa que me levou há pouco até a janela onde percebi que chovia e, difusamente, através das gotas de chuva, fiquei vendo uma roda-gigante. Absurdamente. Uma roda-gigante. Porque não se vive mais em lugares  onde existam rodas-gigantes. Porque também as rodas-gigantes talvez nem existam mais. Mas foram essas duas coisas – a chuva e a roda-gigante –, foram essas duas coisas que de repente fizeram com que algum mecanismo se desarticulasse dentro de mim para que eu não conseguisse ultrapassar aquele momento.

De repente, eu não consegui ir adiante. E precisava: sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto. Mas de repente não havia mais depois: eu estava parado à beira da janela enquanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. Era dessas lembranças que eu queria te dizer. Tentei organizá-las, imaginando que construindo uma organização conseguisse, de certa forma, amenizar o que acontecia, e que eu não sabia se terminaria amargamente – tentei organizá-las para evitar o amargo, digamos assim. Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro quando e como nos conhecemos – logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.

Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada – sabia o tempo todo disso -, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo.

E era sempre de tarde quando nos encontrávamos. Até aquela vez que fomos ao parque de diversões, e também disso eu lembro difusamente. O pensamento só começa a tornar-se claro quando subimos na roda-gigante: desde a infância que não andávamos de roda-gigante. Tanto tempo, suponho, que chegamos a comprar pipocas ou coisas assim. Éramos só nós dois na roda-gigante. Você tinha medo: quando chegávamos lá em cima, você tinha um medo engraçado e subitamente agarrava meu braço como se eu não estivesse tão desamparado quanto você. Conversávamos pouco, ou não conversávamos nada – pelo menos antes disso, nenhuma frase minha ou sua ficou: bastavam coisas assim como o seu medo ou o meu medo, o meu braço ou o seu braço. Coisas assim.

Foi então que, bem lá em cima, a roda-gigante parou. Havia uma porção de luzes que de repente se apagaram – e a roda-gigante parou. Ouvimos lá de baixo uma voz dizer que as luzes tinham apagado. Esperamos. Acho que comemos pipoca enquanto esperamos. Mas de repente começou a chover: lembro que seu cabelo ficou todo molhado, e as gotas escorriam pelo seu rosto exatamente como se você chorasse. Você jogou fora as pipocas e ficamos lá em cima: o seu cabelo molhado, a chuva fina, as luzes apagadas.

Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava – ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas bobas e insignificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros. Talvez você tenha me chamado de fatalista, porque eu disse todas as coisas, assim como acredito que você tenha dito todas as coisas – ou pelo menos as que tínhamos no momento.

Depois de não sei quanto tempo, as luzes se acenderam, a roda-gigante concluiu a volta e um homem abriu um portãozinho de ferro para que saíssemos. Lembro tão bem, e é tão fácil lembrar: a mão do homem abrindo o portãozinho de ferro para que nós saíssemos. Depois eu vi o seu cabelo molhado, e ao mesmo tempo ainda dissemos um para o outro que precisávamos ter muito cuidado com cabelos molhados, e pensamos vagamente em secá-los, mas continuava a chover. Estávamos tão molhados que era absurdo pensarmos em sairmos da chuva. Às vezes, penso se não cheguei a estender uma das mãos para afastar o cabelo molhado da sua testa, mas depois acho que não cheguei a fazer nenhum movimento, embora talvez tenha pensado.

Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nós conversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, e quando ela parou, você foi embora. Além disso, não consigo lembrar mais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe, mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser uma lembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse a alguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quem escreve uma história e procura ser interessante – seria bonito dizer, por exemplo, que eu sequei lentamente seus cabelos. Ou que as ruas e as árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nada a ninguém. E quando penso, não consigo pensar construidamente, acho que ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então pensei numas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela conversa – depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou.

Por Caio Fernando Abreu